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quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Ideogramas e Metáforas Etimológicas

No meu primeiro post falei sobre algo que chamei de "metáforas etimológicas", que é o fato de algumas palavras terem, nos elementos que as formam (afixos e radicais), sentidos ocultos e metafóricos que complementam o sentido mais conhecido da palavra. Por exemplo, a palavra suplicar é formada pelo prefixo sub-, que significa "abaixo", "inferior", e plicare, do latim, que significa "dobrar", "curvar". Portanto, o sentido oculto de suplicar é "curvar-se abaixo (de alguém/algo)". De fato, ao pensarmos em uma súplica, num pedido humilde ou humilhado, a imagem que vem à mente é logo a de se estar curvado perante algo ou alguém, talvez até ajoelhado.

Pois bem! E se eu disesse que os ideogramas japoneses e chineses seguem um padrão semelhante? Os ideogramas são símbolos que, em vez de representarem sons, como fazem as letras do nosso alfabeto, representam ideias, imagens e conceitos. Cada um, um conceito (e por isso que existem milhares de ideogramas). Entre eles, podem haver traços comuns, partes do desenho que se repetem entre alguns ideogramas que tratam de conceitos semelhantes (por exemplo, o radical de "terra", 土, costuma aparecer em ideogramas relacionados a "solo" e a "território", como "castelo", 城, e "lugar", 場.).

Quando examinamos os traços radicais que compõem alguns ideogramas, podemos enxergar metáforas que têm a ver com o significado que eles representam. Com a diferença, no entanto, de que há muito mais vezes em que simplesmente não é possível saber num nível suficiente o que certos radicais estão fazendo em algum ideograma. Como já lhes disse antes, etimologia é apenas um chute melhor ou pior fundamentado. E devo dizer que em se tratando de ideogramas (ou kanji, como são chamados em japonês, e hànzì, em chinês), a questão fica ainda mais difícil, pois há todo tipo de tortuosidade como ideogramas terem mais de um significado (que não necessariamente se relacionam com a tal da metáfora), um mesmo radical ter dois significados completamente diferentes, ou simplesmente não se saber o que raios certos radicais têm a ver com certo ideograma no qual estão presentes.

Algo que costuma acontecer que também atrapalha essa investigação é que muitos autores (por exemplo o professor Kenneth G. Henshall) que publicam hipóteses sobre a etimologia dos ideogramas também publicam livros que comparam um ideograma a um desenho representativo, frase, historinha ou musiquinha que relacione o desenho do ideograma com o seu significado como uma forma de ajudar estudantes a memorizá-los. O problema é que apenas alguns desses lembretes foram feitos a partir de uma hipótese sobre a etimologia do ideograma. A maioria é simplesmente macetes que não dizem respeito a sua origem, o que pode causar um pouco de confusão (adicionando mais ainda à pilha).

Vamos então a alguns exemplos! Meus exemplos se restringem ao japonês, pois infelizmente não estudo chinês (ainda?). Isso tem relevância porque, apesar das duas línguas compartilharem a mesma gama de ideogramas, é comum que no chinês sejam usados ideogramas que não existem no japonês, ou que, de vez em quando, os ideogramas signifiquem coisas diferentes em cada língua, ou que a forma mais comum de uma palavra no chinês seja escrita com ideogramas simplificados, enquanto o japonês continua usando a forma tradicional, mais complexa.

Exemplos interessantes de metáforas etimológicas em ideogramas:

- Esse kanji, que significa "energia", "espírito", "humor", mas também "ar", "atmosfera", e que é lido como ki, só é utilizado atualmente em ocasiões tradicionais. Sua versão que é usada cotidianamente é sua versão simplificada 気. No entanto, só é possível ver a metáfora etimológica na versão mais complexa: observe que 氣 contém 米, kome, que significa "arroz". Daí, diz-se que o conceito de "energia" é simbolizado com um pote de arroz quente, que ao ser aberto, libera vapor, energia, espírito. Parece maluco? Algo muito parecido ocorre em línguas que você conhece.

木, 林, & - O primeiro significa "árvore" (ki), e é a cara de um pinheiro. O segundo são duas árvores, então..."bosque" (hayashi)! E o terceiro, adivinham? "Floresta" (mori). A parte chata é que é muito raro encontrar ideogramas que sejam tão comportados assim.

- Este aqui significa "ermitão" (lido sen), é formado por dois radicais: o de "pessoa" (人, que aqui aparece como イ) e o de "montanha" (山). Sucinto.

- Este significa "sobrancelha" (mayu). Só vou dizer que o kanji de "olho" é 目 (me). É quase um desenho!

- Lido hito, este aqui significa "pessoa". Pra mim é a imagem perfeita de alguém com pernas abertas (andando?). Não sei bem se essa comparação vale como etimologia. Se bem que já ouvi a teoria de que este ideograma, por se tratar de uma noção básica, poderia descender originalmente de pinturas rupestres. Nesse caso, a única coisa que faltaria é o mais importante: provas.

& - A teoria por trás desses dois está mais pra uma forçação de barra minha, mas vejam só: o primeiro significa "espada" (katana), e o segundo, "força" (chikara). Em ambos os casos acho que se parecem muito com isto. Essa é uma postura básica de algumas artes marciais japonesas e pra mim o kanji imita essa forma direitinho. Quem sabe?....Enfim, é nessas e noutras que, como falei antes, pode se confundir etimologia com lembretes.

Uma última coisa: se você estava pensando em aprender alguma dessas duas línguas e ficou desencorajado pela plena bagunça que são os ideogramas, não se assuste! Tudo isso aqui em cima é viagem de etimólogo! De modo algum é necessário saber esse tipo de coisa para dominar a língua. Para dar uma ideia, quando mencionei algumas dessas curiosidades para amigos meus chineses (falantes nativos), nenhum dos dois havia pensado ou ouvido falar sobre isso.
Apesar de fascinantes, a questão prática de lembrar os ideogramas acaba caindo no velho decoreba. Mas é nisso também que a etimologia ajuda! Quando já sabemos que função ou sentido esperar de um radical, já dá pra ter uma noção melhor do que significa palavra. Às vezes, até, é possível saber completamente o significado sem nunca tê-la visto antes.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Poema Etimológico


Dá-se à soberba eminente
Do falo
E da falácia

O silêncio profundo
Do vago
E da vaidade...


Tão breve percebe-se o som
Da constante Gimnopédia...

Vão, mas válido:
A virtude maviosa
Da virgem e do varão
Veneram o sobrevir
E ecoa-se o bordão:

Vanádio de Freya, Vanádio da Gládio!
Presto a vê-la, Rainha,
Sói-nos chamá-la, Bainha!

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Etimologia é um Chute

Como todas as ciências humanas, a etimologia é uma ciência inexata. Não há simplesmente a descoberta de dados que trazem resultados por si mesmos, como é possível fazer, por exemplo, em ciências como a física ou a química. Nas ciências exatas, é possível, pelo menos em teoria, medir com precisão atributos que fornecem informações quantificáveis sobre o fenômeno estudado, o que significa que, se o experimento foi bem realizado, não há discussão sobre o que os dados dizem: tudo o que eles apresentam pode ser medido e replicado por outros cientistas. Para saber mais sobre um fenômeno, segue-se um modus operandi: ou se pensa em um modo de interpretar esses dados, de entender o que eles significam para o fenômeno, de maneira mais correta do que o modo atual, ou se pensa em novos experimentos que supostamente deem novas informações sobre o fenômeno.

Infelizmente, os fenômenos das ciências humanas costumam ser muito mais elusivos. Sem desmerecer de modo algum o trabalho feito pelos cientistas das ciências exatas, é necessário mencionar que, nas ciências humanas, quando se observa um objeto de estudo, seja qual ele for (ex.: um poema, uma determinada época da história, o comportamento de um certo grupo social, uma forma de governo), a primeira dificuldade é que não se pode medir ou quantificar suas características (salvo as tentativas de aplicar estatística a, por exemplo, as ciências sociais). Por causa disso, identificar quais e como são os aspectos desse objeto de estudo fica por conta do modelo de interpretação de cada um. Pois como o assunto se refere ao plano das ideias, ao subjetivo e ao abstrato, a própria interpretação sobre o fenômeno por parte de quem observa já filtra as outras possibilidades de se observá-lo (diferentemente de um laboratório de física, em que a maneira de se interpretar o que se vê é pela medição racional de aparelhos e instrumentos).

O resultado é que em muitos casos várias teorias divergentes sobre o mesmo assunto acabam sendo obrigadas a conviver, pois nenhuma consegue refutar completamente a outra. Todas acabam sendo mais ou menos válidas (exceto, é claro, pelo ponto de vista dos partidários de cada teoria). E fica por isso mesmo, porque conseguir fazer um teste de uma hipótese ou fenômeno em condições controladas, como quando se testa as propriedades de um gás em um laboratório, é algo muito improvável nas ciências humanas, alguns diriam impossível.

Quer você ache essa constatação deprimente ou reconfortante, é aí que entra a etimologia. Poucas coisas são mais elusivas do que a busca por linhas de sentido entre palavras de línguas separadas por tempo e espaço! Algo que pode servir de guia para descobrir a origem de uma palavra são documentos, registros e escritos antigos que contenham algumas palavras que supostamente façam parte do trajeto etimológico em questão, ou que apresentem dados sobre o contexto da época que contribuam a alguma interpretação.

O resto, infelizmente, é chute. A criatividade e o conhecimento linguístico do estudioso de etimologia entram em ação e...enfim, pensa-se em algo que faça sentido. É por essas e outras que acabam surgindo algumas explicações bem duvidosas que, por mais que pareçam fazer sentido, podem ser refutadas comparando com outras palavras da mesma origem, ou com pistas da documentação. Vejamos, então, algumas gafes que populam o universo da etimologia, algumas que chegam a aparecer em dicionários, e outras que não:

• Dizer que o prato japonês tempura vem de "tempero", do português. Embora tanto a palavra quanto o prato terem derivado do contato com os portugueses no século XVI, é mais aceita a interpretação de que os jesuítas comiam o tal do tempura mais comumente durante a Quaresma (em latim quattuor tempora ou ad tempora quadragesimae), período no qual eram proibidos de comer carne vermelha e, assim, preferiam algum prato com peixe ou vegetais.

• Dizer que a palavra "sincera" vem do latim sine, "sem" e cera, "cera", significando literalmente "sem cera", "sem manchas". Muito interessante, mas é bem mais provável que seja na verdade o prefixo sin-, usado para dar o sentido de "junto", "conjuntamente", e o mesmo "cere" de crescere, "crescer" em latim. Disso, "sincero" seria o que "cresce conjuntamente" e portanto que "tem um desenvolvimento único, sem desvios".

• O absurdo de dizer que arigatō vem de "obrigado", do português... ou melhor, de "obrigadô", o que quer que se queira dizer com isso. Bom, etimologia tem de fato a ver com semelhança no som, mas nem tanto assim! Para começar, é muito difícil que uma palavra tão crucial para a vida cotidiana como "obrigado" tenha vindo de uma língua estrangeira, ainda mais em uma cultura como a japonesa, em que relações formais de hierarquia são observadas a todo momento. Outra que arigatō está em si relacionado com outros termos da língua japonesa, como o adjetivo arigatai, que significa "o que se recebe com gratidão", sendo difícil que tenha sido apropriada de outra língua. Preciso continuar?

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

A Amplidão dos Significados

Certas palavras do grego e do latim acabaram originando palavras de línguas atuais que, numa primeira impressão, têm significados distantes das palavras originais. Por exemplo, a palavra gaiato, do português, que significa "arteiro", "travesso", "safado", tem seu cognato mais próximo em gaieté, do francês, que significa "alegria", "animação", "entusiasmo". Essas duas palavras, junto com gay, do inglês, que também já teve o sentido de "alegre", compartilham uma origem em comum no latim gaudium, que também significa "alegria".

O mais interessante é observar como, com o passar do tempo, algumas palavras dessa mesma raiz acabaram perdendo o sentido de "alegre" que tinha na raiz latina, enquanto outras não: gay no inglês passou a adquirir um sentido relacionado à promiscuidade e à homossexualidade; "gaiato" e "gaio"(uma forma pouco usual), no português, adquiriram o sentido de "travesso" como foi dito acima; e enquanto isso, gai no francês atual manteve o sentido de "alegre".

Lança-se a pergunta: como esses três significados (alegria, promiscuidade e travessura) podem ter vindo da mesma palavra? O que isso diz sobre o sentimento de alegria?

Pode-se interpretar que a ideia subjacente a todos estes conceitos é a ideia de despreocupação, com suas implicações positivas e negativas. Estar relaxado, livre de preocupações é estar alegre. No entanto, deixar de se preocupar com certas coisas como os deveres e a observação das leis e dos costumes pode também revelar malícia, não é mesmo? Uma pessoa travessa é alguém age de maneira maliciosa porque não se preocupa com as consequências que suas ações podem causar para outros. Uma pessoa promíscua é alguém que não se preocupa com as normas e "bons costumes" relacionados às relações sexuais.
Todos esses sentidos estão relacionados. Prova disso são os outros usos que damos às palavras "alegre" e "relaxado": quando queremos dizer que uma pessoa ficou bêbada, diz-se que ela "ficou alegre"; quando queremos nos referir a alguém que é um vagabundo, pode-se dizer que é "um relaxado". Irreverência, indisciplina, liberdade e libertinagem são todas facetas do sentimento de alegria, e se revelam não só na origem das palavras, mas também nos vários sentidos que adquirem no uso cotidiano.


O mesmo fenômeno ocorre com a palavra zelo. "Zelo" vem do grego antigo zelos e é cognato de várias palavras que demonstram sentidos positivos e negativos de se zelar por algo. Essa é a mesma origem da qual derivam "zealot" (do inglês, que significa "fanático"), "ciúme" e seus sinônimos "jealousy" (inglês) e "jalousie" (francês). Neste caso específico há o dado interessante de que, na mitologia grega, existe um deus chamado Zelus: um guarda de Zeus que personifica as características do sentimento de zelo. Zelus pode ser tanto um protetor dedicado e fiel como um servidor fanático, ciumento e invejoso de outros que sirvam o mesmo mestre.

Por fim, vale mencionar também que a palavra sad, do inglês, que significa "triste", tem a mesma origem das palavras "satisfazer", "saciar" e "saturar". É claro: o que é mais triste? Enfrentar os perigos de um desafio ou chegar a seu fim e enfrentar o tédio? Jantar um banquete delicioso ou sentir-se saciado após a refeição? A busca pela satisfação e pela saciedade é muito mais interessante do que ela própria. Até porque o próprio sentimento de satisfação descarta a necessidade de novas aventuras. Quem se sente muito tempo saciado acaba ficando enjoado, entediado, saturado.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Introdução e Metáforas Etimológicas

Bem-vindo(a)!

Sou um estudante de Ciências Sociais com uma paixão furiosa por línguas. Fora o português, minha língua nativa, estudo o inglês, o japonês e o francês. Sou um aficionado por temas como a etimologia (ciência que estuda a origem das palavras) e a sociolinguística (ciência que estuda as implicações sociais das variações linguísticas), e, de modo geral, como a língua se relaciona com as ideias e o comportamento humano em diferentes épocas e espaços.

Minha curiosidade fervorosa sobre estes temas me leva a fazer algumas reflexões e investigações em meu tempo livre cujos resultados revelam frequentemente dados curiosos sobre as línguas em geral ou sobre a língua em questão. Vendo o quão infrequente é que dados como estes cheguem a públicos fora do antro acadêmico (salvo o esforço de algumas personalidades que me dão inspiração, como o professor Pasquale Cipro Neto e principalmente o filósofo Mario Sergio Cortella), decidi criar este blog para servir como um espaço acessível para expor e discutir esses assuntos.

Este blog usa um recurso para aprofundar a leitura sem perturbar o ritmo do texto: sempre que vir palavras grifadas, experimente passar o mouse por cima delas. Aparecerá um balão de texto que irá dar informações breves (como, por exemplo, a origem de uma palavra) que enriquecem o texto, mas que não são essenciais para compreender a discussão, como uma nota de rodapé.


Uma das noções fundamentais que será retomada várias vezes neste blog é a relação entre o significado de uma determinada palavra de uma língua falada atualmente e sua derivação etimológica, ou seja, como a palavra é construída (a partir de quais prefixos, quais radicais, etc.). Frequentemente ao examinarmos a partir de quais outras palavras ou sufixos uma determinada palavra é formada, descobrimos sentidos novos, ocultos e mais profundos que, assim, enriquecem nossa concepção daquela palavra.

Um bom exemplo é a palavra concordar. Esta palavra vem de concordare, do latim, que é formada pelo sufixo con-, que significa "juntar", "unir" e por cordis, que significa "coração". Vê-se, assim, que a palavra concordar tem o sentido oculto de "unir os corações", o que renova e aprofunda nosso conceito de concordar. Quem diria que no momento que você estava afirmando sua concordância com um ponto de vista de certa pessoa, estava também unindo seu coração ao dela? Ou que, ao discordar, você separa o seu coração do coração de outro?

O mais impressionante de tudo isso é que é muito frequente que a formação de palavras ocorra por meio de metáforas como essa. Outro dia, por exemplo, suspeitei (e mais tarde, confirmei) que a palavra twilight, do inglês, que significa "crepúsculo", tem em sua origem o radical twi-, o mesmo da palavra twin, que significa "gêmeo", "dois", "par", etc.. Isso significa que, se twilight é o mesmo que twin lights, ou "duas luzes", então o crepúsculo é o período em que as duas luzes, a do sol e a da lua, coexistem.
Incrivelmente poético! Quantas coisas desse tipo a língua mantém secretas apenas na origem das palavras e quanto da profundidade desses significados foi perdida ao longo do tempo? É esse tipo de curiosidade que me rendeu incontáveis pequenas investigações sobre as línguas, que passarei a compartilhar aqui, neste espaço.